Como tantos que chegam diariamente a São Paulo para mudar de vida, Raquel, 23 anos, trouxe junto de Macapá (AP), em 2008, algumas roupas, maquiagens e o sonho de colocar silicone nos seios para ficar mais bonita e feminina. Passou alguns dias com dor no ouvido e resolveu procurar ajuda médica para tratar a infecção. Durante o atendimento, realizou por acaso um teste no ambulatório para travestis e transgêneros da rua Santa Cruz, na Vila Mariana. Descobriu que havia trazido do Norte o vírus HIV.
Raquel na carteira de identidade é Rafael, mas, ao dar entrada no centro clínico, não precisou passar pelo constrangimento de usar o nome masculino. Ela é um dos 300 travestis e transexuais que recebem atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) em Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST/aids), onde está instalado o primeiro e até agora único lugar no Brasil feito para cuidar da saúde de pessoas como ela. Todos usam o nome que bem quiserem desde a inauguração da casa, em junho do ano passado.
A assistente social responsável pela unidade, Angela Maria Peres, 50 anos, afirma que ao menos oito travestis e transexuais são atendidos ao dia, sempre à tarde. A maioria, 56% do total, são profissionais do sexo. "Normalmente travestis não gostam de sair no período da manhã porque trabalham à noite. Também evitam usar metrô em horário de pico porque não se sentem confortáveis", diz. Um terço da procura por atendimentos é por tratamento com hormônios femininos, seguido por problemas relacionados à aplicação de silicone industrial (26%) e lesões em geral (7%).
Sem cirurgia
"Em outros hospitais já fui muito mal recebida, tinha de esperar, voltar em outro dia. Aqui recebi toda a atenção no mesmo dia. Já saí medicada, uma semana ou duas depois estava boa e voltei de novo", diz Raquel. No dia 13 de maio, quando foi ouvida pelo Terra, levava uma amiga que encontrou manchas no corpo para fazer o teste de HIV. No CTA, ela é um dos três travestis que recebem seus remédios para tratar a aids, além de acompanhamento psicológico. Comemora bons resultados no exame de imunidade.
Angela conta que o atendimento por psicólogos tem, entre outros, o objetivo de avaliar a necessidade de encaminhar o transexual para uma cirurgia de mudança de sexo. "Precisamos nos assegurar de que elas têm certeza do que querem e não vão voltar atrás", diz. O procedimento tem a cobertura do SUS e é realizado, em geral, no Hospital das Clínicas. A espera, no entanto, é longa e pode chegar a 5 anos. Por isso a necessidade de uma triagem rigorosa. Raquel tem certeza de que não quer a cirurgia, ao menos por enquanto. "É meu instrumento de trabalho", diz.
R$ 1 mil para não usar preservativo
A doença Raquel adquiriu com relações sexuais desprotegidas, a pedido de um cliente amapense. "Não fiquei chateada, não fiquei magoada, soube levar a vida", diz. O comportamento de risco era uma rotina. "Me pagavam muito mais para não usar camisinha, até R$ 1 mil", afirma.
Hoje "bate ponto" na rua Cruzeiro do Sul, onde cobra R$ 50 por programa de homens entre 25 e 45 anos, mas não topa sem camisinha "por dinheiro algum". "Já fui muito prejudicada por isso e não faço nunca mais." Os planos de Raquel são recorrer à Justiça para colocar o nome de guerra na carteira de identidade e largar a prostituição para voltar a cursar a faculdade de turismo, que frequentou até o 4° período.
A assistente social comemora que a maioria de testes para HIV feitos no CTA dão negativos. Ela atribui o bom resultado à prevenção. Mas adverte que há muitos frequentadores do ambulatório que acabam "fiados" no resultado negativo para seguir vivendo situações de risco. "As pessoas estão usando o teste acreditando que é prevenção. Isso não é prevenção, é só constatação. É preciso sempre se cuidar", afirma.
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